sábado, 18 de outubro de 2008

"Boneca de porcelana"

Jorge sentia cada milímetro das palmas de suas mãos arderem no contato com a enxada. O sol já estava no horizonte, mas a sensação causada pela insolação fazia com que parecesse meio-dia. Sua cabeça ardia de calor e cansaço. Seu estômago reclamava da fome causada pela escassez de comida e dinheiro. Não conseguia pensar em outra coisa senão em sua pequena filha, cujo aniversário era no dia seguinte e a quem não poderia dar nem mesmo um mínimo necessário de comida.
Dava suas últimas machadadas quando ouviu um som oco. O pedaço de terra removido revelara a existência de algo de couro. O camponês cavou com a pouca força que lhe restava, conseguindo desenterrar o baú por inteiro apenas quando a noite já havia caído. Estava sujo, mas era, de fato, um artigo luxuoso. Destravou seus fechos e abriu-o, viu, então, um volume de seda rota que revelava apenas pés de porcelana com sapatinhos de couro. Mal pôde acreditar que havia encontrado boneca tão cara enterrada por ali. Pensou em levá-la para a feira em Amsterdã, mas lembrou-se da filha que, pela primeira vez na vida, teria um presente de aniversário. Recobrou o fôlego e, feliz como nunca antes em sua vida, arrastou o baú até sua casa, limpou-o e deixou-o, então, aos pés da cama da criança, que dormia profundamente. Desabou na cama de palha e passou a noite inteira sonhando com a alegria de sua filha e esposa ao verem a surpresa.
Na manhã seguinte, Jorge acordou com um leve e agudo grito vindo do quarto da criança. Entusiasmado, despertou sua esposa e lhe contou da surpresa que havia preparado. Vestiram-se rapidamente e foram quase que saltitando até o quarto da menina. Chegando lá, a encontraram ao chão, desmaiada com a boneca nas mãos e o lenço de seda ao lado. O camponês correu ao corpo da filha e ao desprendê-la da boneca viu que esta, na realidade, era um cadáver de criança.

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