quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Velocidade contra producente

Na última terça-feira, 28 de outubro, tive de entregar uma resenha para a disciplina de Legislação em Jornalismo que respondesse à seguinte questão "Há alternativas para uma atuação do profissional de jornalismo em que se respeite especialmente a privacidade e o conceito de interesse público na atualidade?". A resposta deveria ser elaborada levando em consideração um debate realizado pela turma nos dias 14 e 21 de outubro a partir da leitura do 1º capítulo do livro "Ansiedade de informação", de Richard Saul Wurman; e de dois artigos presentes na edição de outubro da revista "Scientific American Brasil": "Fim da privacidade" de Daniel J. Solove e "A privacidade está morrendo, ou já morreu?" por Ethevaldo Siqueira.

Velocidade contra producente

Afirmar que a globalização jamais haveria chegado em seu estágio atual sem a revolução da comunicação não é notícia de hoje. Tampouco seria inovador dizer que a informação, sua produção e detenção, é a forma de governar o mundo, consolidando interesses dos grupos dominantes pela influência que exerce nas pessoas. Para sobreviver nesse habitat, não só as grandes companhias, mas também a população em geral, precisam de informações que as orientem sobre o mundo que as cerca.
Aí se inserem novamente os grandes conglomerados donos ou patrocinadores dos grandes meios de comunicação de massa. As mesmas tecnologias revolucionárias da comunicação, são utilizadas por essas empresas num confronto para ver qual consegue transmitir mais dados à população antes da concorrência. Um dos reflexos dessa produção em massa é a duplicação do conteúdo informacional a cada cinco anos. Essa ocorrência poderia ser extremamente benéfica se, primeiro: tivéssemos acesso e capacidade de compreender esses dados; e segundo, fossem realmente relevantes para as pessoas.
Infelizmente, não é o que vêm se observando. O ritmo e o volume de tal produção fordista de informações é tamanha que ao invés de saciar a necessidade que as pessoas têm, gera uma ânsia por não permitir que elas acompanhem tudo que está sendo divulgado. O caso extremo dessa sobrecarga é uma edição do New York Times que foi às ruas em 13 de novembro de 1987. Com 1612 páginas, sua leitura e compreensão em um único dia são impossíveis a qualquer ser humano, o que evidencia o mar de informações no qual estamos afogados.
Tão afogados, que nem nos damos conta que boa parte disso não constitui mais do que dados brutos, muitos dos quais, devido à sua desconexão com outros necessários a sua compreensão, nunca terão algum significado. Esta perda na produção jornalística, devido a demanda por construção de “notícias” a uma velocidade ultra-sônica, se dá não só na construção dos elementos textuais que trarão significado a elas, como também nos conteúdos por elas abordados.
O Big Brother é um dos mais gritantes casos de esvaziamento do conteúdo midiático e confusão entre vida pública e privada. Se a princípio havia alguma curiosidade um tanto quanto científica dos holandeses que o planejaram para estudar o comportamento humano nas conhecidas condições do programa, o que até justificaria ser calcificado como de interesse público, hoje ele não é mais do que uma afirmação da fome da população pelos seus 15 minutos de fama. Ora, quem criou essa necessidade foi a própria mídia. Num primeiro momento por atiçar a curiosidade das pessoas e vender como notícia o glamour da vida privada de artistas, políticos e demais personalidades cujo trabalho era antes o foco das pessoas e, depois ao trazê-las para auditórios e concursos que lhes proporcionassem, mesmo que brevemente, a mesma sensação de importância. Desta forma, a mídia foi criando uma nova fatia de mercado, pautado muito mais no que é de interesse do público, mesmo sem ter efetiva relevância para suas vidas, mas que se manteve pelas condições de mercado.
Com o advento da Internet, somado a câmeras fotográficas e filmadoras digitais - ultimas inovações da anteriormente comentada revolução da comunicação - as pessoas viram a sua oportunidade de se fazerem conhecer através de blogs, fotologs, sites de relacionamentos. Ao tentar se cadastrar num deles as pessoas são, mais uma vez, inundadas por informações dos termos do contrato, entre as quais se encontram aquelas referentes à privacidade. Mas, como as pessoas estão mais interessadas em ler sobre a vigésima internação da Amy Winehouse numa clínica de reabilitação para narcóticos elas simplesmente aceitam os termos do contrato sem se preocuparem como os outros usuários poderão se valer de suas informações pessoais.
A auto-exposição de estilos e preferência das pessoas na Internet vem sendo largamente aproveitada por empresas que as têm como publico alvo; entretanto, esta invasão, permitida pelo contrato do site, é velada e, novamente, as pessoas não são assim tão bem informadas quanto às grandes operações de poderes que tramitam nos bastidores. Por quê? Porque a mídia não lhes informa largamente sobre esse tipo de utilização que tange efetivamente a vida do internauta. Muito pelo contrário. Ela se alimenta disso na composição de muitas de suas matérias bombásticas e fomenta seu avanço.
Especialistas, como os trazidos pela reportagem da Scientific American Brasil, afirmam que não há mais privacidade e tudo o que resta a ser resguardado pelas instituições governamentais, sites e organizações que detêm nossas informações, é o acesso a tais informações e que muitas pessoas nem se importam com isso, o que é um fato incontestável. Mesmo que alguém permita, ou não esteja em condições de negar, a exploração de seu universo particular pela imprensa em algum momento íntimo e delicado de sua vida, muitas vezes, essa exposição não tem caráter informativo, somente de espetáculo para atração da audiência.
Embora a capacidade de atrair a audiência seja fundamental para a sobrevivência econômica de um jornal, aquele que o produz, o jornalista, têm uma função social estabelecida em seu código de ética: informar o que for interesse público “contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas”. Segundo o mesmo documento o jornalista não pode “divulgar informações de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”. Ponto que vêm sendo transgredido de maneira tão dilacerante nas ultimas coberturas jornalísticas, como nos casos da defenestração de Isabella Nardoni e o seqüestro seguido de assassinato Eloá Pimentel que até mesmo jornal Zero Hora do Grupo RBS, uma das afiliadas da Rede Globo, teve de comentar, no seu editorial de 25 de outubro de 2008, o abuso nas notícias televisadas dos casos, especialmente do segundo.
Apesar de, no caso acima citado, o editor chefe não ter tido a dignidade de colocar o dedo na ferida e acusar falhas internas de seu veículo, a própria mídia começa a sentir os danos que causa quando invade um espaço que está além de seus limites. Apesar da tragédia, este é um bom momento para que os próprios jornalistas, formados ou estudantes, repensem sua atuação e levem esse novo pensamento para suas chefias através de negociações. Num caso mais extremo a organização da classe jornalística – hoje tão paralisada – junto a estudantes em uma greve seria, apesar da distância da realidade, uma boa forma de barganha.
Entretanto, uma vez que as próprias camadas dirigentes da mídia estão se dando conta da saturação da forma como se dá a apresentação dos conteúdos por ela veiculados, suas concepções estarão mais permeáveis a boas propostas de mudanças. Tais proposições, juntamente a estudos pedagógicos, talvez possam resgatar a dimensão educacional dos meios de comunicação. Criar-se-ia, assim, um caminho mais voltado para as reais necessidades da população e da plena atuação funcional do jornalismo, ao buscar maior qualificação de seus empregados, ampliando suas capacidades de redação, e, assim, aprofundando as possibilidades de interesses de um novo público leitor.

sábado, 18 de outubro de 2008

"Boneca de porcelana"

Jorge sentia cada milímetro das palmas de suas mãos arderem no contato com a enxada. O sol já estava no horizonte, mas a sensação causada pela insolação fazia com que parecesse meio-dia. Sua cabeça ardia de calor e cansaço. Seu estômago reclamava da fome causada pela escassez de comida e dinheiro. Não conseguia pensar em outra coisa senão em sua pequena filha, cujo aniversário era no dia seguinte e a quem não poderia dar nem mesmo um mínimo necessário de comida.
Dava suas últimas machadadas quando ouviu um som oco. O pedaço de terra removido revelara a existência de algo de couro. O camponês cavou com a pouca força que lhe restava, conseguindo desenterrar o baú por inteiro apenas quando a noite já havia caído. Estava sujo, mas era, de fato, um artigo luxuoso. Destravou seus fechos e abriu-o, viu, então, um volume de seda rota que revelava apenas pés de porcelana com sapatinhos de couro. Mal pôde acreditar que havia encontrado boneca tão cara enterrada por ali. Pensou em levá-la para a feira em Amsterdã, mas lembrou-se da filha que, pela primeira vez na vida, teria um presente de aniversário. Recobrou o fôlego e, feliz como nunca antes em sua vida, arrastou o baú até sua casa, limpou-o e deixou-o, então, aos pés da cama da criança, que dormia profundamente. Desabou na cama de palha e passou a noite inteira sonhando com a alegria de sua filha e esposa ao verem a surpresa.
Na manhã seguinte, Jorge acordou com um leve e agudo grito vindo do quarto da criança. Entusiasmado, despertou sua esposa e lhe contou da surpresa que havia preparado. Vestiram-se rapidamente e foram quase que saltitando até o quarto da menina. Chegando lá, a encontraram ao chão, desmaiada com a boneca nas mãos e o lenço de seda ao lado. O camponês correu ao corpo da filha e ao desprendê-la da boneca viu que esta, na realidade, era um cadáver de criança.